O tratamento da artrite reumatoide: 220 anos de uma história com final feliz
27 de Julho, 2020                                                                                                 

Na Paris de 1800, o cirurgião Augustin Jacob Landré-Beauvais (1772–1840), na sua tese de Doutorado, fez a primeira descrição de uma doença que acometia as articulações de mulheres de uma forma crônica. Ele denominou de “Gota astênica primitiva” essa doença que, definitivamente, não parecia ser a já conhecida Gota, cuja descrição havia sido feita por Hipócrates (460-380 a.C). Ainda nos corredores do Hôpital La Pitié-Salpétrière, em 1867, Jean-Martin Charcot (1825-1893) separou o  “reumatismo crônico” de outras patologias como a artrose e a febre reumática.

                                                                                                                     

 A tese de Landré-Beauvais foi o primeiro relato médico da artrite reumatoide (AR)doença autoimune que tipicamente inflama as pequenas articulações das mãos e dos pés de quase 1% da população mundial. Diferente da Gota, que classicamente esteve mais presente entre indivíduos de classes econômicas mais abastadas (“a doença dos reis”), a AR parecia ser mais prevalente em populações de poder socioeconômico mais baixo. Até hoje, os mecanismos que levam ao surgimento dessa poliartrite (poli = muitos; artrite = inflamação da articulação) ainda não são totalmente conhecidos. O que se sabe é que fatores genéticos, tabagismo, infecções e até mesmo a flora gengival podem ser considerados gatilhos causadores da doença. 

Ao longo desses 220 anos que nos separam da primeira descrição da doença, além da melhor compreensão de sua fisiopatologia e da escolha de um nome “mais adequado” para sua definição (graças ao clínico inglês sir Alfred B Garrod em 1858), outros avanços aconteceram. Em 1956, o Colégio Americano de Reumatologia (ACR) definiu os primeiros critérios para  o diagnóstico da artrite reumatoide. De tempos em tempos, esses critérios são revistos, para que possam ser cada vez mais sensíveis e específicos.

O tratamento da AR também passou por grandes modificações. Até o fim do século XIX, foi de sangrias e purgantes à aspirina (1899). Já no século XX, passamos por vacinas, eletrochoque, veneno de cobra e enxofre coloidal aos sais de ouro. De fato, por volta de 1950, o ouro era o remédio mais valioso para o tratamento da AR, sendo prescrito por um erro de concepção (“se é ativo na tuberculose, uma doença crônica, por que não ajudaria em outra doença crônica que parece ter uma causa infecciosa envolvida?”). Nas décadas de 40 e 50, duas classes de drogas revolucionaram a Reumatologia: os glicocorticoides e os antiinflamatórios não esteroides. Esses medicamentos finalmente conseguiram melhorar a dor, a inflamação e a funcionalidade de pacientes com AR e são utilizados até os dias de hoje. Todavia, seu uso a longo prazo, como drogas “isoladas”, é limitado pelos efeitos colaterais.

O benefício de fármacos imunossupressores no tratamento da AR começou a ser estudado em 1951, mas foi somente entre as décadas de 80 e 90 que drogas como o metotrexato e a leflunomida se estabeleceram como “drogas antirreumáticas modificadoras de doença”, ou seja, capazes de retardarem a progressão da AR, evitando deformidades articulares e a perda da funcionalidade. Ainda mais revolucionário, foi o surgimento das drogas imunobiológicas, agentes recombinantes que têm como alvo inibir moléculas específicas, relacionadas ao processo inflamatório perpetuador da doença. Desde a aprovação do Etanercept, um inibidor de TNF, em 1998, mais de 10 drogas imunobiológicas já têm seu uso difundido na prática reumatológica atual.

O progresso científico no conhecimento e tratamento da artrite reumatoide dos últimos 50 anos provocou uma mudança total na vida dos pacientes. A doença autoimune mais frequente no Mundo perdeu o status de patologia deformante, progressiva e “astênica”, graças ao trabalho incansável de pesquisadores e clínicos. 

                                                                                             




Edith Piaf tinha o diagnóstico de artrite reumatoide. Em 1949, três anos após o lançamento de La vie en rose, Philip Hench e colaboradores apresentavam os resultados do trabalho com a 17-hidroxidehidrocorticosterona 
no sétimo Congresso Internacional de Doenças Reumáticas, em Nova Iorque. 



Infelizmente, temos assistido a um movimento crescente de prescrição (por médicos não especialistas e não médicos) de fórmulas e suplementos, supostamente eficazes no controle da artrite reumatoide. “Vitaminas maravilhosas”, “colchões analgésicos”, “chás desintoxicantes” insistem em propagandear uma “cura” à moda do início do século XX, quando tudo que nos restava era aliviar as dores com linimentos e bálsamos.

A artrite reumatoide tem tratamento e controle. A história da doença, no século XXI, já contempla uma terapia eficaz e personalizada, que alia medicações seguras à reabilitação motora, em parceria com a fisioterapia e a terapia ocupacional.

Procure um reumatologista.

Referências Bibliográficas: Queiroz, Mário Viana. História da Reumatologia. Editora Kalligráphos, 2007.